Karma com jeitinho

Vendo o horror da pandemia na Índia, lembro das vezes em que passei por esse país fantástico e me vem um rosto aristocrático à memória, o de Montek Singh Ahluwalia, um economista de peso no país, que foi uma espécie de ministro do Planejamento, com passagens pelo Banco Mundial e pelo FMI. Um cara acessível e brilhante, acabou se tornando fonte de boa parte dos jornalistas veteranos brasileiros que cobriam encontros internacionais. Uma vez, me deu uma excelente entrevista numa das reuniões do Fórum Econômico Mundial, e, no dia seguinte, vi que o Clóvis Rossi e um outro jornalista também tinham falado com ele e pelo menos três jornais brasileiros traziam entrevista com o cara, parecia que tinha dado uma coletiva para os brazucas.

Pois foi o Ahluwalia – num de nossos encontros, quando eu fazia uma viagem à Índia a convite do governo, acompanhado do querido Marcelo Ninio – quem me explicou um segredo de polichinelo por trás da enorme diferença entre o acelerado crescimento econômico indiano e nossa modorra brasileira: “Sergio Leo, em matéria de infra-estrutura, estamos onde vocês estavam nos anos 50; temos de crescer muito mais para chegar aonde vocês já estão”.

Os indianos estão muito mais avançados que nós em campos como a fabricação de medicamentos genéricos, por exemplo. Mas, de fato, quem anda pelas ruas de Nova Dehli, algumas parecidas com recantos sem graça de Taguatinga no Distrito Federal, nota (ou notava; não vou lá há uns dez anos) uma quantidade enorme de geradores movidos a diesel, equipamento indispensável num país de rede elétrica precária, propícia a apagões. Por muito tempo, para preservar emprego e o comércio tradicional, foram proibidos os shoppings centers e grandes centros comerciais, o que fazia os locais de lojas de luxo, como o Kahn Market, parecerem uma galeria de lojas de Madureira, no Rio.


Isso explica por que não dá para falar exatamente que Bolsonaro ficou isolado na Cúpula do Clima convocada por Joe Biden: algumas nações sabem que terão enorme dificuldade em apagar sua pegada de carbono no esforço pelo desenvolvimento, dependentes que são de carvão, diesel e outras fontes sujas de energia. Mas o Brasil era uma força emergente a puxar esses países; hoje é um zero à esquerda, lendo no teleprompter textos que não entende direito, sobre promesas vagas que não tem intenção de cumprir.


Há países, como o nosso, em que só o esforço por maior institucionalidade pode deter a entropia de nossas tradições esculhambadas, que só nos afundam na inconstância e incompetência. Estávamos construindo essa institucionalidade, a tal ponto que um governo de esquerda consolidou os poderes dos organismos policiais e judiciais que provocaram a queda desse mesmo governo, sem sofrerem intervenção superior.

Elegeram, a pretexto de acabar com a corrupção (e, na verdade, para derrubar as resistências a uma agenda utópica liberal), um amigo dos milicianos, que hoje destroi essa institucionalidade à luz do dia. Vai dar trabalho reconstruir o caminho para a impessoalidade na administração e o respeito às leis.

A bagunça pode funcionar, mas tem seus limites, como mostra o caótico transito indiano, que me surpreendeu, com as largas avenidas e as rotatórias sem semáforos, por onde passavam centens de carros novíssimos e velhíssimos em Nova Delhl. Uma zona, em que, volta e meia, carros abalroavam sem nem parar para ver o estrago. Li numa revista lá na Índia um artigo sobre esse tráfego incompreensível, e o texto acabava com esta lição: “se notar um carro com um indiano ao volante vindo em sua direção, num cruzamento, e você não souber para onde desviar, entenda que o sujeito à sua frente também não tem a mínima ideia do que fazer. Mas, com uma diferença: ele acredita em reencarnação”.

Sobre sergioleo

Escritor, Jornalista, artista plástico
Esse post foi publicado em Uncategorized. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário